Beso arrumou em Juventude Supersônica (Campinas, SP: Do Autor / Javali, 2008) a produção que tinha espalhada: papéis amarelos, revistas, zines, coletâneas, gavetas rabugentas. As três partes do volume (“Outro Passado”, “Novo Presente” e “Futuro Relâmpago”) expressam quinze anos de atividade poética, de 1993 até o ano de publicação.
Smells like teen spirit (Nirvana, 1991) sopra dessas páginas norteadas por um engenho adolescente desde o título do livro. Com menos lances aborrescentes (“Vida-Muda”) que delinquentes (“Saudosa Maloca”), o poeta dramatiza as vésperas da maturidade. “Lição”, por exemplo, morde a angústia entre os dentes, põe em cena a luta de quem briga pela identidade. O eu jovem tenta se encontrar, mal se achando no espelho da confissão (“penso escrever / a biografia de um desconhecido”). Certos hermetismos (“no ex-sangue de uma ideia”), quase fora de lugar em tema tão usual, justificam-se por reforçar o enigma dessa fase: ser crise ambulante.
Nos momentos menos felizes (“Ratos Ratos Ratos”) a juventude cheira ao ludicionismo linguístico de quem aprende a jogar com palavras. Os melhores (“Nem os anjos se aguentam mais”) rebentam uma sintaxe que bufa, pulsa e tropeça como quem aprende a beber. Eis o próprio conflito da adolescência, um pé demorado na infância, outro preparando o pulo para a selva adulta. Estamos ao som de Sonic Youth.
Todos os relógios estão errados
Nenhum ponteiro girando em torno de si
mesmo
sabe dos meus momentos, do desespero
que me invade e arde pra fora
desse círculo minúsculo chamado cabeça
ou cérebro ou mundo ou relógio…
Minhas dores não estão medidas em cada
pulo
de segundo,
nem obedecem ao toque de recolher
minha alegria,
como uma bandeira baixa no mastro
de tão rápida descansa parada
num lugar que não parei.
Durmoinstantessoandoinfinitosporque
sonho mais comprido do que as batidas
do que as horas
do que esse tempo sempre pra fora e ainda
assim agora…agora?
Agora.
Tempo de emoção não se mede no relógio, adolescente não se conta pela razão. A pontuação livre, o jeito de quebrar os versos apenas lembram o enjambement convencional. Em “Todos os relógios estão errados”as normativas da sintaxe e da pontuação são delinquidas pelo andar torto, num sobe-desce guia, nem rua nem calçada: “em cada / pulo / de segundo”. No meio da avenida, o bueiro sem tampa. O momento é supersônico e escapa entre os dedos do cronômetro, por isso é preciso adiar o time is money, esticar a irresponsabilidade por mais um dia, como o anti-herói de Ferris Bueller’s Day Off (Curtindo a Vida Adoidado, 1986).
O poeta desarruma a linearidade, inclusive rítmica, sublinhando a juventude aos tropeços, chapada (“eu bebo com duas asas no bolso”, diz em “Bebo”), jamais elogiando os tempos de cama arrumada. O jovem está no presente, sem a rememoração futura que tudo organiza. Negar. É do jovem quebrar a cara. É de incertos poetas estourar o nariz, assim Arthur Rimbaud, Roberto Piva, Arnaldo Baptista e Kurt Cobain que aqui ecoam. Beso tem companhia e sabe o que fazer para escapar à canaleta que formata toda a água da chuva. Daqui para frente, é aprimorar sua arte da sintaxe soluçante no meio do fluxo da vida.
Por Pedro Marques
21 set. 2010