Com A Pérola e a Ostra (Campinas, SP: Verus, 2007), Cássia Janeiro finca um dos pés na lírica; adere “ao fluxo da emoção, como se o verso brotasse de uma fusão inextricável da vibração pessoal com o desejo de alcançar o outro por meio da linguagem ordenada”, diz A. Candido no prefácio.
A poeta parece imprimir a pulsação da vida na partitura poética às vezes quase canto. “Poetas são fotógrafos de sombras. Quando o poeta escreve, as sombras ganham rostos. Com as palavras, eles as seguram”, desenha R. Alves na apresentação. Na lírica, de fato, sombras são as idéias sumidiças quando não condensadas em palavras.
Essa poesia lança melodias no horizonte da leitura. Não o paralelismo convencional, mas sequências sonoras que vão e quase nunca voltam iguais. Às vezes as melodias se fecham em si tonteando o leitor, a partir de então esquecido do conteúdo. Nisso Cássia é do gênero canção. Ouça-se “Terraço”, em que duas prateleiras fixas de sons sustentam o recheio de variações sonoras. Há como que um jogo imperfeito de ecos, traduzindo o espelho inexato em que o esquizofrênico espia e enxerga outra face. A vida perceptível não lhe corresponde.
Terraço
Minha vida é um terraço,
De onde vejo a madrugada fria
Que tece a solidão da penumbra.
Minha vida é catacumba
Da esquizofrenia,
Que me fere como aço.
Minha vida se esvazia
Do cansaço
Que vislumbra.
Minha vida é umbra
Do sol melgaço
Que tua pele alumia.
As melodias, ainda, se repetem sem fechar um circuito sonoro. São lançadas para se perder lá no longe, até onde a ouvido alcance. Preparam uma resolução realizada só no pensamento. Algo entre a chave de ouro e o aforismo faz com que, neste volume, lírica e filosofia dêem as mãos. É neste solo que Cássia firma seu outro pé. Ela gosta de sugerir através da musicalidade, vai embalando nossa cabeça, mas, no final, precisa fechar certas portas, alguns assuntos, incertas dores.
O poema que leva o título da coletânea estrutura uma reflexão dialética. A voz poética não esclarece se pérola ou ostra é a tese, apenas delineia uma como antítese da outra. Mas o que interessa é a síntese dos dois objetos: o primeiro alegoriza o resultado de determinada ação; o segundo o caminho até o resultado. Quem julga um poema, por exemplo, vai apreciá-lo melhor se conseguir captar o trabalho que o gestou. Conclusão: quem vê aparência é imediatista, quem nota essência, de fato, conhece. Eis o velho embaraço filosófico, traduzido aqui na tensão entre os dois vocábulos repetidos cinco vezes cada.
A Pérola e a Ostra
Haverá uma pérola
Em cada
Ostra?
Haverá um tanto de
Ostra
Em cada pérola?
Já fui pérola,
Hoje, ostra.
Prenhe do fundo do
Mar.
Ao olhar a ostra,
Pergunte-se:
Existirá aqui uma pérola?
Mas é bom olhar para a
Pérola
E perguntar-se
Quanto custou à ostra
Essa gestação.
Os poemas, no entanto, de maior tensão são aqueles em que as vertentes lírica e filosófica formam uma única corrente. As melodias continuam lá, mais ou menos audíveis, do mesmo modo as proposições. São vigas encobertas sob a parede da casa, dominantes do acorde poético. É quando Cássia não se contenta em sonorizar ou filosofar, mas em poetizar o que quer que sinta. Em “Mulher”, todo um tecido acústico baseado em poucas vogais (-a; –e), semi-vogais (-î) e consoantes (-s; –fl) distingue o poema da fala corriqueira. Espalhados pelo texto, tais sons aparentemente ao léu oferecem as marcações para uma locução.
Mulher
Não seja como uma flor,
Pois flores são arrancadas
Ou pisadas.
Seja uma árvore
E deixe as flores brotarem bem acima
E cuide para quem vai deixar alcançá-las.
A madeira deve ser escolhida com cautela;
As nobres viram móveis,
As fracas se dissolvem em meio a cupins.
Escape do seu destino de ser
Decorativa, arrancada, pisada, morta.
Em termos de pensamento, vejo aqui um uso particular da disseminação e recolha. Diferente da técnica praticada nos setecentos (Gregório de Matos ou Sebastião da Rocha Pita), a dispersão dos conceitos ao longo do texto dá-se de maneira oculta, não pelo emprego das palavras que os correspondam. Convoca-se a mulher para escolher entre ser a convencional e frágil flor, e a anti-decorativa e sólida árvore. O conselho às mulheres é claro. Como sempre no último verso, a recolha sumariza o que ocorre àquela que hoje não toma as rédeas de seu destino: vira enfeite de família; dirigida conforme a conveniência; humilhada porquanto dependente; vê seus desejos extirpados.
Por Pedro Marques
23 set. 2010