A Dor da Saudade ou O Cancioneiro Caipira de Elpídio dos Santos: uma antologia é a maneira como Alexandre Rezende de Almeida apresenta, em livro, sua pesquisa de mestrado. Gestado no Programa de Pós-graduação em Letras da EFLCH-UNIFESP, o texto, que ora chega a todos os interessados, entra para a biblioteca dos estudos caipiras como leitura necessária. Não são poucas as qualidades a se frisar aqui, a começar pela organização e apresentação de fontes primárias, uma riqueza de materiais textuais e visuais que vão de fotografias a páginas manuscritas, passando por recortes de jornais. Tudo num estilo sempre comunicativo, de quem faz questão de informar os neófitos e de dialogar com os entendidos no assunto.
Estudar a canção caipira, em sua parcela textual, com um método antes explicativo que judicativo, pode parecer algo simples, mas já revela compromisso com a inovação. Basta pensarmos que tal poesia tem sido negligenciada nos estudos literários e nas aulas de literatura do Estado de São Paulo, justamente o epicentro de irradiação da cultura caipira. O presente trabalho, de fato, além de recusar o preconceito que vê no caipira um tosco sem arte própria, afasta o pitoresco de projetar no paulista campesino a ingenuidade quase inata. Alexandre é rigoroso o bastante para não se portar como um turista da matéria, preferindo caminhar feito o guia matreiro, conhecedor de enrascadas e atalhos da trilha.
Abordar qualquer poeta da canção é uma tarefa árdua, pois o texto quando composto para canto, embora aparentado ao poema metrificado para a página, solicita do analista olhos e ouvidos bem atentos, habilidades que nem todo pesquisador de Letras sabe somar: a consideração da poesia enquanto narrativa e entoação. E não falo do instrumental técnico-musical, que este estudo apenas margeia, posto não se arrogar à apreciação da melodia, da harmonia ou dos arranjos, roçado da pesquisa musical. É o desafio mesmo de quem se equilibra num objeto entre áreas ou multiáreas, assim como a canção, operando como especialista e generalista a um só tempo, mas sem jamais perder o rigor.
E Alexandre, ainda, aceitou um complicador extra em sua tarefa, o de estudar Elpídio dos Santos (1909-1970), alguém que fez dos gêneros caipiras um de seus principais braços de atuação como compositor, instrumentista e professor. Os poucos a conquistar prestigio acadêmico no Brasil procedem, em geral, do samba (Noel Rosa), da dita MPB (Francisco Buarque de Holanda) ou mesmo do tal rock nacional (Renato “Russo” Manfredini). Já as canções de um João Pacífico (João Baptista da Silva) ou de um Carreirinho (Adauto Ezequiel) ainda são tratadas como brotos espontâneos, como se seus artífices fossem meros médiuns do povo. Nega-se de tal modo o labor artístico a esses poetas – seus notáveis conhecimentos de ritmos, formas e motes – que não raro eles próprios se convencem de que antes coletam que cultivam a voz popular. Esta pesquisa revela, no entanto, que Elpídio sabia que uma toada sertaneja requer regras literárias e musicais determinadas, assim como um choro ou uma polca. É preciso técnica para desempenhar a canção, um domínio aprendido na prática comunitária e/ou no exercício escolar. Um compositor como Elpídio, inclusive, lidava com as expectativas do público, sob pena de não ser reconhecido pelos exigentes ouvintes do rádio, fiel companheiro de milhões de brasileiros à época.
Como orientador de trabalhos acadêmicos, às vezes me perguntam o que faço para motivar meus alunos. Sim, porque a indústria motivacional cresce na proporção dos casos de depressão laboral ou estudantil. Em certos ambientes de graduação e pós-graduação, tal pode se dar por uma fatal combinação de cobrança exacerbada, vaidade e condições precárias de pesquisa. Não raro os tais agentes motivadores são os mesmo que inoculam o veneno paralisante para, em seguida, venderem caro a cura, comumente administrada em iguais doses para perfis completamente distintos. Minha experiência, pelo contrário, mostra que as pessoas são movidas a questões que as constituem e identificam.
Tivesse se obrigado a lidar com letras de punk rock, outro tema incrível mas desconectado dele, talvez Alexandre concluísse uma pesquisa cheia de percalços negativos, que contribuiria apenas para aquisição burocrática do título de mestre. Quem sabe até travasse, recorrendo a socorros psicológicos ou químicos, que certamente lhe trariam algum bálsamo, ainda assim sem dar sentido para a pesquisa. Estudar assuntos conectados a nossa condição de gente – Paulo Freire estava correto – pode ser uma estratégia promissora na iniciação científica ou no mestrado, ali onde o pesquisador afia o instrumental metodológico e o ânimo analítico, em busca da autonomia intelectual. A partir do doutorado, evidente, o sujeito se achará preparado para descobrir terras além da sua aldeia afetiva.
Alexandre chegou buscando a relação entre poesia e música na canção popular. Servidor dedicado ao Instituto Federal de São Paulo, inquieto, frequentava nossas disciplinas como aluno especial. Foi a sensibilidade da professora Francine Fernandes Weiss Ricieri que nos colocou em contato. Ele conhecia o arquivo familiar de Elpídio dos Santos, repleto de letras e partituras que cobriam os mais diversos gêneros cancionais e até instrumentais. Feitas as trocas de ideias e tomados os devidos cafés, soube estar diante de um intelectual caipira, daqueles que muito assuntam e pouco se exibem, alguém em formação, mas da cepa de um Alfredo Bosi, do lado literário, ou de um Ivan Vilela, da banda musical. Perguntei se naquele acervo elpidiano haveria uma quantidade razoável de modas de viola, toadas, cururus etc., para além das canções que encantaram os filmes de Amácio Mazzaropi.
Ele voltou contando que eram mais de uma centena de inéditas, sem colocar na balança as famosas, frequentes no repertório de apreciadores e tocadores de música caipira, como a clássica “Você vai gostar”. Não tinha mais volta, o pesquisador desposara o objeto que ele só fez defender com brio, palmilhando, inclusive, a dura estrada de mobilizar referencial bibliográfico disperso, raro, quando não esquecido. Um Amadeu Amaral, por exemplo, que costuma ser apenas aventado como mais um folclorista, e não pelo franco interesse etnográfico no caipira, em ação paralela aos registros fonográficos de Cornélio Pires, a partir de 1929.
Eis o que chega as suas mãos, leitor-ouvinte, a discussão renovada sobre um assunto pouco visitado e, de lambuja, com um material inédito, que vem à público passadas décadas da morte do compositor. Que este livro, também uma homenagem à memória de Elpídio dos Santos e à cultura caipira, venha frutificar em novos pesquisadores do campo das Letras e da Música. Aliás, abre-se mesmo a possibilidade de novos artistas gravarem ou musicarem os versos aqui reunidos.
Louvado seja o prazer e o direito de estudar o que nos move!
(Prefácio para A dor da saudade: o cancioneiro caipira de Elpídio dos Santos, [2023], de Alexandre Rezende de Almeida.)
Por Pedro Marques
23 jun. 2023