Chuva de Doido | Pluie Folle

Chuva de Doido

                        Cem anos de João Cabral de Melo Neto,
                        Quarenta d’A Escola das Facas.

Quando nós, de meninos,
tragamos a fissura
de juntar dos cigarros
as marcas mais esdrúxulas

O embola-trouxa Pedro,
o torriforme Edinho,
de pé, de bicicleta
trocar o repetido

Tarde sépia, descemos
a ladeira do Asilo
Sanatório Ismael,
a murada, o presídio

O Doido cai do céu,
a chuva de caju,
o joelho na sarjeta,
a rotina fratura

Horácio até recorda
a voz da mãe nenhuma,
o corpo mal dopado
lambendo a cor da rua

Feito filme, o passado
se repara com estilo,
limando o pó da rosa
e a secura do rio

Horácio, retirante
a farmácia das veias,
ausculta o tempo em transe,
a cana de um desejo

E esticamos a mão
ao fujão passarinho
– nós, lelés do pedaço –
três risos e um mendigo

E chispando o corisco,
voltamos ao ser rês,
puxei, puxaste o carro
e a coleção se fez

*

Pluie Folle

                        Cent ans de João Cabral de Melo Neto,
                        Quarante de A Escola das Facas

Quand nous, de petits,
nous apportons la passion
de collectionner des marques de cigarettes
les marques les plus extravagantes

Le fou de Pedro,
le tordu d’Edinho,
debout, à vélo
échanger ce qui est en double

Après-midi sépia, nous descendons
la colline de l’Asilo
Sanatorium Ismaël,
le mur, la prison

Le Fou tombe du ciel,
la pluie de cajou,
le genou dans le caniveau
la routine fracture

Horace se souvient même
la voix d’aucune mère,
le corps mal dopé
léchant la couleur de la rue

Tel un film, le passé
se répare en grand style,
polit la poussière de la rose
et la sècheresse du fleuve

Horace, migrant
la pharmacie des veines,
ausculte le temps en transe,
la cachaça d’un désir

Et nous tendons la main
au petit oiseau qui s’enfuit
– nous, maîtres des lieux –
trois rires et un mendiant

Et allumant l’étincelle,
on devient bête de trait,
j’ai tiré, tu as tiré la charrette
et la collection est finie

 

(Poema publicado no livro Sobressaltos – Antologia de poemas brasileiros contemporâneos / Sursauts – Anthologie de poèmes brésiliens contemporains, organizado por Cristhiane Rodrigues de Souza e Fabiane Renata Borsato, com tradução de Catherine Simonot, 2024.)

Por Pedro Marques
27 dez. 2024