Canção: dos oceanos da cultura brasileira. Sons de correntes, mares, línguas ao vento, pés na terra. Rascunhos urbanos, como Olinda e Salvador, entrechocaram populações diversas – euros, árabes, judeus, áfricos, índios –, refundaram convenções do canto sacro, do verso cortesão. Algo se registrou da música e da poesia cultas do colonial, pouco das sonoridades de ruas, de festejos mundanos. Só uma brisa esfarrapada chegou a nós, para intuirmos que o projeto civilizatório português disparou, também, o processo de mistura e seleção de falares, narrativas, escalas e formas que são o chão da atual canção popular, comercial ou tradicional.
A percepção cultural e artística de muita gente brota desse legado cancional, que atravessa corpos e mentes, inventa um mundo de sentir e entender. A língua brasileira, com suas variantes, concebe modos particulares de criar e ler tudo. Não a música pura ou canto lírico, mas música vocal popular e de consumo que, como conhecemos, ganhou corpo estético, social e comercial no século XX. Melodia que acontece por causa das curvas entoacionais do brasileiro. Nas palavras de Luiz Tatit, “a prática musical brasileira sempre esteve associada à mobilização melódica e rítmica de palavras, frases e pequenas narrativas ou cenas cotidianas” (“O Século XX em Foco”. In: O Século da Canção, 2004).
Professores de muitas áreas fazem uso educacional da canção. Os de literatura aproveitam o fato de que, em geral, a canção é mais natural que a própria literatura ao estudante. Um samba, um cateretê instalados no coração podem reunir aspectos literários nada triviais, além do potencial interdisciplinar (história literária, musical, política, social, econômica) e transdisciplinar (canção como território poético, musical, coreográfico). A dimensão linguística propulsiona as demais: melódica (entonação reelaborada) e gestual (movimento corporal dentro e/ou fora da canção). As três dimensões são latentes no instante da criação, e definidas no espetáculo/performance, instante da comparticipação entre origem (compositor e intérprete) e finalidade (público). Gênero músico-poético-gestual em si ante-especialidade, tridimensional ou transdisciplinar, no sentido multidimensional que o conceito tem na Carta da Transdisciplinaridade (Freitas, Lima de; Morin, Edgar; Nicolescu, Basarab [Org.], 1994).
Isolar texto ou harmonia da canção é sua morte. Entrar na língua da canção, que sustenta campos harmônicos, complexos poéticos e sistemas rítmicos-coreográficos, é sua vida. Professores levam canções para aulas com ou sem formação musical. Propõem reflexões interdisciplinares e transdisciplinares a partir da informação e da língua na canção. Confirma-se a hipótese de que, na canção popular, ouvimos mais nossa própria língua entoada, ritmada que a música propriamente dita de arranjos e harmonias. Mas o uso por si da canção em aula não garante a experiência educativa inusitada.
Um exemplo repisado. Utilizar “Pra não dizer que não falei das flores” (1968), de Geraldo Vandré, apenas como ilustração da resistência à Ditadura Civil-Militar (1964-1985), não revela nenhuma prática interdisciplinar. É preciso associar a batida do violão ao compasso da passeata urbana, do êxodo rural. Harmonia básica de dois acordes, ritmo mono-pulsante, melodia monótona, tudo menos elaborado que outras composições do autor. O violão vira metrónomo, relógio marcando o passo do ouvinte. A voz, conduzida por entoações gerundiais, opera como bordão organizando a marcha popular que, se dispersa, perde força de mobilização. Coloca-se, mesmo, a canção no centro de uma relação ensino-aprendizagem quase evangelizadora, que pode ser a peça cantada mas também toda a canção popular brasileira (“Caminhando e cantando e seguindo a canção / Aprendendo e ensinando uma nova lição”).
Como gestos repetidos de trabalho, a batida do violão insiste. A melodia encurva um hino, exorta ao modo das assembleias de esquerda às escondidas. A mensagem clama à ação imediata e conjunta contra o estado de coisas (“Vem, vamos embora que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora não espera acontecer”). Tal quadro multiárea fez a graça da canção e a desgraça do autor, que divulgou por rádio e televisão distorções sociais como a “fome em grande plantações”. Para Ruy Mauro Marini (Subdesenvolvimento e revolução, 2012), naquele momento, o poder econômico-político-militar, dentre outras, imperializava, numa “superexploração do trabalho”, o “exército industrial de reserva” do próprio país, composto sobretudo por aqueles que perdiam lugar no campo rumo a cidades despreparadas.
Apenas um esboço de aula ou análise reflexiva que, partindo da canção, navega por suas esferas intrínsecas (poesia, música, gesto) e extrínseca (política, história, sociedade, economia). Mais no capítulo “Canção: ramais interdisciplinares”, que escrevi para o livro A formação docente interdisciplinar: perspectivas linguísticas e literárias (2013).
(Revista Pessoa, 26/04/2014.)
Por Pedro Marques
24 nov. 2014