300º Poema da Semana | 02mai2022

Mãezinha, Nossa Vó

Mãezinha, minha vó, criava cabras
plantava verdura no girau
Mãezinha, minha vó, mãe de minha mãe
criava cabras leiteiras no quintal
sabia como ninguém fazer uma farofa de piabas.
Nos seus quase noventa anos,
pescava muçum à noite breenta do campo
pescava as lembranças dos filhos na cidade,
outros já velhos atolados ainda na miséria do mato, no cento
pescava na lembrança o tempo das festas no Jacioca,
das festas de caboclo que negro não entrava.
Pescava na memória, suas filhas negras bonitas,
e acoitadas no “luxo” caseiro: Beré (Berenice),
Bibi (Beatriz), Valentina (Tia Valentina, cabrita
valente, êta negra forte!), Tiodora (Tia Dora, hoje
na roça roça), Tiadilú (Tia De Lú), Tio Pedro e o filho
que a Amazônia tragou nos tempos da borracha,
pescava a vida neles com jeito de quem cuida
dum jardim que plantou.
Me trazia coisas confusas, coisas do mato,
coisas e manhas coisas do seu povo, do meu povo,
Mãezinha, negra retinta, negra grandona de pele definida
preta, preta! Minha origem africana, meu lamento oral!
Mãezinha, naqueles tempos enfrentava o mar brabo
nas costas de um barco-a-motor, só pra nos ver
pra nos dizer das coisas.
Mãezinha criava cabra, eram muitas!
Criava galinha, pato, marreca e porco também
andava léguas e léguas a pé e não cansava
cortava no mato caminho estreito!
Sucumbia no peito a visagem contada daqueles caminhos
a pancada súbita dos seus quase noventa anos
e pescava em sua memória,
a casa cheia as coisas de crianças
pescava, pescava e nos achava em sua memória
na beira do campo… pescava…!
E nos transmitia a vida, dos nossos,
pro tempo não nos matar.

*Vilmar Alves Ribeiro_1954-_Cantiga pra gente de casa, chegada em cima da hora_1981