Tempo sem conta

O relógio marca o tempo de divisas e doenças. Na pilha de empilhar notas, a gente, mais em conta que robôs, vê seu sopro surrupiado: a fábula de ser humano, o bicho capaz de viver em estado de arte. O sonho do tempo (2020), Tággidi Mar Ribeiro (1981-), está pela hora mítica, pela chama antediluviana que ora acende, ora consome a existência.

A partir de algum fado individual, cada poema espalha pistas sobre a aventura da espécie. O corpo feito voz pulsa substantivo, sobre ele se depositam sedimentos imemoriais de dor e gozo (“Meu corpo ancestral”). Aquele que se abriga no tempo tem algo de sábio, ao sublimar o ciclo de uma vida (“Onde os ventos da História fazem curva”), e de místico, ao adivinhar o ritmo do cosmo (“Metrônomo de todas as eras”).

É que para além do poema ou verso, da imagem ou metáfora, Tággidi desagua no oco do tempo. É água de mina (“pensar com o corpo a sentir”) e sangue pelas orelhas (“almas não assoviam as manhãs”). Poucos tem liquidado (Anna Akhmátova, Murilo Mendes e, hoje, Humberto Pio) o instante contábil de modo tão dramático. Poesia líquida e rarefeita só poderia fluir dessa poeta-musa, batizada em signo d’água, a “cantar a gente surda e endurecida”.

(Quarta capa para O sonho do tempo, [2020], de Tággidi Mar Ribeiro.)

Por Pedro Marques
28 mar. 2020