Escrever sobre a poesia do século XXI é uma tentação de muitas faces. A face juvenil reuniria seus amigos identificados pela vida e arte. Nós os representantes da geração, compartilhando livros, autores, referenciais e estilos. Tudo tão bonito a ponto de provocar inveja a quem não foi convidado para a festa. Um modo legítimo de dar algum sentido ao tempo caótico quando se é parte dele. Uma vontade de conforto compreensível, contra o medo de falar para as paredes, de estar só nesse mundo. Esta oficina, não vai em busca dessa afirmação adolescente.
Há a face normativa, mais sisuda, advogando pela melhor poesia hoje, que precisaria honrar os mestres do passado ensinados da escola à universidade. Elegendo certos valores como bons e corretos, procura normalizar algumas poucas práticas da geração atual. Como se fosse crível, quando cada comunidade gera e reconhece suas próprias representações, falar em características gerais da época presente. A essa altura do conhecimento científico em linguagens, esta oficina se recusa a ser o juiz batendo o martelo: condeno esta poeta ao esquecimento; libero este poeta à leitura, à edição e à explicação por estudiosos de Letras.
Muito outras fisionomias se nos ofereceram, mas preferimos ficar com uma híbrida, a face pajé-bióloga, que constata os rios poéticos tangíveis e intangíveis, navegando seus valores em função de quem as toca, escuta, lê, dança, enfim, reconhecendo quem cozinha, consome e adivinha o gosto das mais diversas artes do verbo. Num país gigante pelas terras e infinito pelos cruzamentos culturais, esse método não pretende hierarquizar autores, obras e técnicas, mas amplificar nosso catálogo de vozes, letras e suportes acumulados neste tempo em que sobrevivemos.
Não se enganem, a canção feita agora pode cheirar às bandeiras caipiras do século XVIII. Um livro editado em 2020 talvez acorde melodias e amores medievais de 1020. A batalha de rimas disputada neste exato momento, frente a uma estação de metrô, lembra as feiras e mafuás do século XIX. O meme poético-político, impulsionado pelos algoritmos da rede social, se irmana ao pixo protesto da década de 1980. O corpo diante da câmera do celular, entoando canções à capela, quem sabe sinta saudade da procissão, da serenata andante.
Nesta nação que Darcy Ribeiro chamou de “morena humanidade em flor”, interessa Augusto de Campos, poeta performer idoso e premiado. Martina Marana, cantora letrista compositora jovem e nichada, interessa. Gustavo Caboco, artista poeta multimeios cartaz em mostras e museus, interessa. A anônima participante do Grêmio Haicai Ipê, comerciária de profissão e poeta por amor, interessa. O popular falador de poesia em São José do Egito (PE), brindando num bar com seus ouvintes, interessa.
Parafraseando Milton Nascimento e Caetano Veloso, qualquer maneira de poetar vale a pena. Assim, os participantes desta oficina que cobriram de versos, por exemplo, uma melodia de Thiago França. Nos interessa afirmar: este é um país cuja poesia falada, cantada, escrita, impressa, desenhada, sonhada ou bailada resiste à camisa de força das definições fechadas e preconcebidas. Toda história da poesia brasileira contemporânea que apenas liste livros individuais – ignorando declamações em streamings, zines passados de mão em mão ou o vasto cancioneiro popular – será uma narrativa mutilada.
Nos quatro encontros da nossa oficina, os participantes buscaram, nos diversos rios da cultura brasileira, um peixe-poema: poesia mural, pictórica, musical, literária, improvisada, multilíngue, etc. Também compuseram versos para uma melodia de samba já pronta, esticando e tensionando a noção de forma fixa. Isso, sem contar o poema que escreveram a partir de uma ideia alargada de tempo presente em que passado e futuro se misturam. Por fim, vale dizer da atividade: todos foram convidados a sair de si e preparar versos na voz dos outros, se descentrando. Aliás, encontrar em nós outras vozes pode ser uma diversão. Poesia é divertido.
(Literatura Brasileira no XXI, Edição 46 – Julho/2024.)
Por Pedro Marques e Leonardo Gandolfi
09 set. 2024