Ouvi Ofertório de Heresias (Editora Caravana, 2021) do pernambucano Iêdo Paes antes mesmo de lê-lo. Áudios se ofereciam pelo celular, cada podcast uma pausa erótica na rotina. Cliques narrativos em meio ao isolamento pandêmico, que vem contundindo mentes e lombares. Oitivas parceladas foram me revelando narrador e locutor. Experiência única essa, pois costuma-se ler os narradores de Graciliano Ramos, mas sem saber qual seria a locução do autor. Que dados carregaria a voz do criador lendo um único capítulo de Vidas Secas? Porque a voz do escritor, quando se faz atriz do texto, desenha entonações, um tremor em certas palavras, um corte na respiração, a contundência de algumas frases.
O Iêdo autor-locutor é, então, também intérprete de seus contos cânticos (cônticos), como o compositor que interpreta suas canções. Quando o próprio Lenine canta e toca “Amor é pra quem ama”, parceria com Ivan Santos, desvela sentidos não escritos na letra e na melodia. Nem sempre escritor e compositor são seus melhores intérpretes, mas é imprescindível ouvi-los. O livro, inclusive, muito ganharia se trouxesse a voz de Iêdo, ou links para suas performances vocais, o que também valeria para outros de seus conterrâneos, tais Marcelino Freire e Cida Pedrosa. Recomendo, por isso, que o leitor se faça ouvinte durante a leitura desses lances eróticos, cheios de afagos e ofegos. Empreste sua língua a estes narradores cheios de surpresas, porque Eros é a alma do corpo e o corpo fala, grita e, aqui, geme.
O título Ofertório de Heresias, de saída, prepara um quadro de paradoxos. Emana da própria teológica cristã, dentro da qual heresias devem ser purgadas e não consagradas, a ritualística da carne girando por todo o livro. O corpo surge para ser beatificado não como confirmação da matéria decadente, mas enquanto perfeita máquina de prazeres. Ainda que as cenas tragam ações rebaixadas pela moralidade, o encontro dos corpos jamais é de repente ou banal, mesmo quando perpassado pela troca monetizada, como para Joice, a puta-santa de “Dedicação”. Depois de ler/ouvir os primeiros cônticos, eu já esperava que tudo acabasse em sexo. O corpo será sempre o campo de batalha entre sagrado e profano. Mas como seria o próximo roteiro?
É o caminho para a cama, rota do prazer carnal e até da violência possessiva, que Iêdo ritualiza. Há danças de acasalamento, jogos de amplificar o gozo, preliminares que, não raro, mobilizam todos os sentidos dos personagens. O ritual parte, em geral, de um ponto, o avistamento do objeto cobiçado, até a realização do desejo, a comunhão dos corpos sob Eros. Esse pêndulo platônico é sempre o mesmo, variando o que rola no meio. Qual será a próxima peripécia erótica, me perguntava a cada início? Entre a caça e a comida, Iêdo arquiteta novos itinerários para a caçada, que podem terminar numa transa de balada, como em “Espetinho de carne com bacon”, ou na explosão da sexualidade socialmente encoberta, como na refrega entre Hermes e Silas, em “Mesa 67”. Aliás, chamada pelo narrador de “ritual selvagem”, a relação desses machos é especialmente didática, uma chave para o livro. A cena toda é ritualizada, das roupas até o ato sexual, passando pelos comes e bebes no boteco.
Mas nem tudo redunda em gran finale para os envolvidos. Iêdo faz a crônica de verdadeiros rituais macabros, em que um dos corpos do ato, em vez de altar dos prazeres, é supliciado à tirania do outro corpo. Nisso, seguimos com a tônica paradoxal: a violência sexual atravessa o limite do gozo egoísta. Teófilo, de “Queimor”, encarna essas figuras angelicais para a sociedade, e demoníacas na intimidade, arrancando à força a satisfação no corpo feminino, destruindo a esposa a seu bel prazer. Um animal! Assim, se na fruição consensual os corpos iluminam as almas, o contrário também se dá, porque o assédio moral termina em profanação do corpo alheio.
É a agressão física que anoitece a alma de Marisa, em “Silenciada”, quando o sádico Petrônio se refestela em submeter a parceira. E há, ainda, a violação sem penetração ou sopapos, o estupro psicológico. É a sina de Neusa, Arlete ou Vilma: serem mutiladas física e psicologicamente, sobrevivendo a atentados que, inclusive, desfazem quaisquer hierarquias sociais, por exemplo, entre domésticas e médicas. Eis que o livro é também denúncia, toma parte no debate, sempre atual, sobre violência contra a mulher. A esposa, a namorada que vive a espera do pior: “Eu durmo de coração alerta; é a voz do amado que bate” (Cântico dos Cânticos, 5:2)
Cada côntico pode ser lido à escolha, sendo a ordem do índice apenas uma sugestão. Num mundo pornográfico, isto é, de farta oferta de obscenidades não apenas sexuais, a web virou uma espécie de fast foda de baixa elaboração. Corpos se atracam sem nenhuma química, mas também surgem esfacelados por close-ups, sem cerimonia alguma, e para todas as idades e estruturas psíquicas. Agudo, Iêdo divisa o paradoxo dessa confusão: no meio da abundância de peitos, bundas, paus e xoxotas vale a pena ser integro consigo, ser de corpo inteiro; na avalanche de conteúdos, custa achar um único significado.
A inflação de pornografia faz do humano um bicho inversamente menos erótico, seja por desconhecer as engrenagens erógenas do próprio corpo, seja por não desenvolver sua psicologia amorosa. Iêdo faz da palavra lúbrica um aviso. Melhor que bisbilhotar o sexo viral, que tal virar seu saudável agente, de corpo e alma? O vocabulário fescenino, portanto, é estrutural aqui, não é uma gratuidade, coisa de boca-suja. Aquilo que se diz na cama é o sal, a pimenta, o tempero do sexo, que sozinho não passa de carne crua, gesto automático e até falta de respeito. Para Cida Sepúlveda, honrada com a dedicatória do autor, o “especialista da língua” é alguém que nos lambe “o sexo-alma, a alma-sexo” (Todo amor tem seu dia de punhal, 2011). Estilista afrodisíaco, cavalo de Eros, Iêdo, claro, não se faz de rogado.
Haveria muito a acrescer sobre o conjunto dessas cenas eróticas, podcasts de Eros. Para concluir, no entanto, aponto o que Iêdo talvez questione de mais fundo: se a religião for a prisão dos corpos, o castigo dos desejos, seu ambiente será paradoxalmente o da consumação dos corpos, o da infelicidade afetiva. Contextos religiosos são, de fato, o palco mais assíduo dessas narrativas, atrás apenas do quarto. O vocabulário religioso, para além de impregnar os textos, desde o título do volume, é usado ironicamente para sacralizar e louvar o corpo, justamente a cidadela dos pecados tão temidos em missas e cultos dogmáticos. Para o paradoxo das ideias, um estilo irônico. O diabo mostra o rabo onde mais se fala dele, ali onde repressão vira invocação. Os corpos desses personagens, os resolvidos ao menos, não são demoníacos, mas libertados do inferno moral.
Assim, as evangélicas Judite e Sara, em “Bem- aventuradas…!”, se entregam depois de sufocarem por “tanto tempo as delicadezas de corpos tão sedentos”. Criadas sob a lei bíblica, elas se entendem é na lição de Ovídio, já que no fim da vida “a terra come os ossos e o mar leva o nome” (Arte de amar, l. 2, v. 96). Luxúria é a arte, prazer é a ciência, ambos são anjos que salvam o corpo neste Terreiro de Eros! Sexo como libertação psíquica, ligação amorosa, saber de si no outro. Sexo mesmo como ação comunitária, exercício de caridade, livramento das trancas do corpo. Aqui, homossexualidade não é rival da virilidade, como pactuam Solon e Júlio César, em “De uivos e silêncios”. Aqui, há prostitutas de ofício, como Anete, em “Top preto com lantejoulas”. Aqui, Iêdo de Eros geme e range os dentes no ouvido de quem quiser!
(Resenha publicada na revista Poesia Sempre, Fundação Biblioteca Nacional, no. 38, 2023.)
Por Pedro Marques
06 abr. 2023