A pergunta talvez faça pouco sentido em sociedades leitoras tradicionais. Aquelas em que o livro, a revista e o jornal seguros entre as mãos, ou o aplicativo aberto sob os olhos, representam um instante quase sagrado do indivíduo consigo. O feitiço diante de um objeto de leitura foi ganhando encanto conforme o mundo foi se urbanizando, racionalizando e se automatizando. Perdidos os mitos, as aldeias e o senso comunitário, sempre cantados e falados, a escrita encadernada funciona quase como um portal da imaginação, de um jogo agora portátil e, em regra, solitário.
Mas mesmo aí onde a leitura individual é requisito do cidadão, tal como abrir a conta bancária ou ter hora para entrar e sair do trabalho, um poema parece resistir a determinados padrões de leitura. Um poema num livro ou periódico mostra mais o branco da página que um texto em prosa. O poema é uma mancha rarefeita na página. É quase uma praça no meio da urbes moderna.
Talvez aí esteja o segredo para começarmos a ver um poema como algo que também canta, que também solicita o corpo e não apenas o intelecto. Um poema faz lembrar que falamos, que somos gregários. E mesmo nos frontes das vanguardas modernistas, o poema fazia as vezes do grito, não raro do insulto. Um poema, portanto, tem algo de nostalgia da voz e da comunidade.
A sociedade brasileira, resultando de tantas culturas alfabéticas migrantes, de Europa e África, e ágrafas locais, de América, e diaspóricas, de Áfricas, criou uma conexão peculiar entre leitura e audição. Temos sempre um olho no livro e um ouvido no causo. Uma mão que escreve e outra que fala por gestos. Conhecer essa tensão criativa entre escrita e oralidade, é central para entendermos parte substancial da nossa poesia publicada em livros ou gravada em alguma forma de mídia.
Poetas como Castro Alves, Luís Gama, Olavo Bilac, Cecília Meireles, Solano Trindade, Ferreira Gullar ou Adélia Prado não escreveram apenas para a mudez do impresso. Muitos de seus poemas nasceram para voz, e para ela retornam cada vez que um leitor vira seu locutor, seu cochicho. Talvez por isso nossas bibliotecas e salas de aula sejam um tanto ruidosas para o gosto europeu. Ora, lemos falando. Não é falta de educação coisa nenhuma, é um não querer guardar só para si o que se sente.
É uma elaboração apurada, que alterna e sobrepõe som e pausa. Uma aprendizagem por simultaneidade, do escutar falando, do falar ouvindo. O atual pool de novas tecnologias é com a gente mesmo. Responder email, ouvir mensagens e educar o filho é nosso dia a dia há séculos. Meus alunos analisam poemas ouvindo música e, ao mesmo tempo, avisando a mãe que vão jantar mais tarde. Eles são ótimos!
Essa simultaneidade não poderia simplesmente sumir do poeta quando escreve, do leitor quando lê. Assim, o que está quieto num escrito está também gritando. Porque música é som dançando com o silêncio. Assim, os brancos de uma página com poesia tem tanto valor quanto os pretos tipográficos. Essa alternância de cor e não cor é já uma partitura, sobre o que de fato soa e cala num poema.
Assim lemos, falamos e ouvimos poemas contemporâneos na oficina O que tem de música num poema? Versos de Alice Ruiz surgiram pulsando no peito da mãe. A pregação de Cuti, devolveu a voz ao negro silenciado na cadência da chibata. A lira de Mauro Sta. Cecília tirou a roupa de dicionário, e se fez corda mexendo o corpo do poema e do leitor. Os desenganos de Lula Cortês viraram sensações em acordes, sinos tocando dentro da gente. Porque, claro, queremos acessar livros os mais complexos, mas para que eles caminhem com as histórias faladas de pais para filhos. É que há uma cantiga ancestral cantando mais que pássaros no Brasil, como sugere o poema de Marli de Fátima Aguiar.
Todo esse ouro musical foi garimpado pelos alunos da oficina, em poemas de livros e álbuns de canções. Na rocha adormecida do impresso, eles acharam brilhos e sons para acordar a própria rocha que, no fundo, é o livro quando canto, é o leitor quando conversa(dor). Que você que me ouve aprecie as resenhas a seguir, colocando cabeça, garganta e orelhas para trabalhar.
(Literatura Brasileira no XXI, Edição 04 – Janeiro/2021.)
Por Pedro Marques
09 set. 2024