Paulo Leminski costuma ser aquele das cores quentes. Que aquece o rosto do leitor com riso inteligível. Conforta nossa cabeça em citação consabida, feita pop ainda que erudita. Esquenta a língua numa sacada que se mexe em metáforas e metonímias, ou se pendura em anáforas e recortes vocabulares ao jeito concretista, mas sem o peso de quem achou o télos da poesia. Que, enfim, queima feito rabo de galo entornado no beat do momento. Um poeta, em regra, up! Traços que se encontram em Caprichos & Relaxos (1983), livro semovente para os formados nos referenciais culturais e didáticos que fizeram do modernismo risonho e ligeiro a festa das aulas e da iniciação literária. Nos anos de 1980, a agilidade de jornais, zines, peças publicitárias, rádios e tevês, refeita de linguagem direta, quase homeopática no uso de recursos, torna a produção do poeta familiar. Leminski teve e ainda tem, desde então, o papel fundamental de introduzir gerações na poesia. Função parelha deve ser valorizada em Caetano Veloso na canção, em Décio Pignatari na teoria poética, em Douglas Tufano no ensino de língua, redação e literatura.
Menos evidente é o Paulo Leminski das cores frias. Aquele que solicita o cobertor da cultura literária, o aquecimento de alguns anos na apreciação poética. Não que o poeta desapareça com o lúdico em trocadilhos (“Sem budismo”), espacialidades (“Sortes e cortes”) ou homeoteleutos (“Imprecisa premissa”). Em Distraídos Venceremos (1987), os poemas operam em dupla função, uma individual e outra como engrenagem do projeto poético que, no fundo, dá unidade ao livro. Se na coletânea de 1983 (reunião de quase vinte anos de produção) o poema era quase um projétil em si, agora é peça a sustentar o funcionamento de uma máquina. O livro carrega tonalidades do grave (“Proema”), às vezes com vales elegíaco (“Último aviso”), sem eliminar picos de gracejo (“Medo e ouro”). Nada alimenta mais essa elevação e reflexão sobre o fazer poético do que as pequenas artes poéticas, ainda que elas, não raro, ironizem o próprio subgênero. São poemas gelados demais para a expectativa habituada ao Leminski da chama clara: “Aviso aos náufragos” (espécie de exórdio do volume), “Desencontrários”, “Iceberg” (alegoria da lírica como gelo), “Razão de ser”, “O par que me parece” (eco apagado do “Homem que sabia Javanês”, de Lima Barreto), “Diversonagens suspeitas” ou “Despropósito geral” (alguma coisa do “Profissão de fé”, de Olavo Bilac).
A imagem naturalizada da poesia de Leminski, sobretudo da década de 1980 em diante, baseia-se fortemente na coleção de 1983, verdadeiro best-seller da poesia brasileira. Como alternativa a esse poeta fogo, que consome desde o gosto do bom aluno colegial, Ricardo Gessner propõe aqui o poeta gelo que emerge do livro de 1987. Não se trata de cancelar o valor do primeiro, mas de revelar que a síntese crítica da obra global não pode ser apenas a interpretação, mesmo que inventiva, de Caprichos & Relaxos. Estudar o livro menos visitado pela fortuna crítica do poeta curitibano é já uma contribuição notável deste jovem pesquisador. Lidar com Distraídos Venceremos, talvez o plano poético melhor arranjado e realizado de Leminski, foi o desafio sobre o qual Gessner moveu suas pás da iniciação científica (UFSCAR, orientação professor Wilton Marques) até a conclusão do mestrado (UNICAMP, orientação professor Marcos Lopes). Em lugar da lareira confortável, preferiu se arriscar sobre o traiçoeiro gelo.
Diversas as virtudes do trabalho, graças à rara qualidade de quem lê poemas com olhos determinados e, a um só tempo, desarmados. É que Gessner busca interpretações e teorias prontas apenas depois de visitar os poemas persistentemente. Não surpreende a cena do crime com o inquérito já redigido, ao contrário, o poema vai brotando interrogações que, aí sim, chamam o método, a investigação e o rigor solicitados pelo próprio objeto. O que o leitor encontra, portanto, neste Paulo Leminski: uma poética da distração – um estudo sobre Distraídos Venceremos é um texto generoso, limpo, econômico em referências. O autor cerca os problemas com precisão, com a paciência de quem atravessa o lago congelado sem escorregões ou trincas. Todos saem vivíssimos dessa aventura: poeta, pesquisador, fortuna crítica, leitor e, principalmente, os poemas. Para quem já queimou o álcool de Caprichos & Relaxos, acrescente ao copo o gelo de Distraímos Venceremos. Aprecie sem moderação.
(Prefácio a Paulo Leminski: uma poética da distração – um estudo sobre Distraídos Venceremos [2015], de Ricardo Gessner.)
Por Pedro Marques
03 fev. 2016