A lírica é dos primeiros sopros da poesia ocidental. Tão velha quanto os poemas homéricos e anterior ao teatro grego, nasceu a partir de uma base poética, musical e coreográfica.
Esse triângulo pouco equilátero atravessa os séculos ora expandindo, ora retraindo seus lados. Definidora, tal triplicidade também a posiciona, até o século XIX, num lugar secundário entre gêneros, onde o verbo é centro expressivo: épica, tragédia, diálogo, epístola, confissão, história, sermão, romance.
Quando favorece a palavra, a lírica anima maquinarias rítmicas, voltas linguísticas e semânticas sem igual. É a poesia gravada em papel, do soneto ao verso livre, cantando e dançando na língua. Se privilegia o som, conforma-se à melodia de árias ou canções, à entonação de narrativas orais. Preferindo o movimento, serve aos rituais religiosos, festivos, da lida. Por isso pode ser estudada por teorias da literatura, música, corpo, antropologia ou etnografia. A canção folclórica e a de consumo são, portanto, expressões líricas. Verdade que o lado poético do triângulo pode ser aí menos desenvolvido. Mas lá está ele numa farra do boi repleta de cores e gestos. Lá está o texto emocionando a multidão no show de luzes.
Nesse chão em que o Brasil brota os mais diversos frutos, também viceja um tipo de canção capaz de iniciar gerações. Já antes de alfabetizadas ou letramentadas, nossas crianças encontram esse material por áudio, vídeo e, depois, texto. Penso na lírica musicada que, independente de educação formal e segmentos de mercado, prepara a molecada para a literatura.
O som, a letra e a palavra
Canção repetida nos primeiros anos de vida. Lúdica na linguagem, simulado da silabada infantil, às vezes sem pé nem cabeça, melodia chiclete que gruda na mente. Em Acabou Chorare (1972), de Moraes Moreira e Galvão, o jogo sonoro encarna o dengo de boca que acalma bebê: “Acabou chorare, ficou tudo lindo / De manhã cedinho, tudo cá cá cá, na fé fé fé / No bu bu li li, no bu bu li lindo / No bu bu bolindo / No bu bu bolindo / No bu bu bolindo”. Daniel Azulay (Xá-xé-xi-xó-Xuxa, 1984) usa o próprio abecedário para fixar o nome Xuxa. Depois da escola, aquela que viraria “rainha dos baixinhos” é a recompensa, o sorvete: “Xá-xé-xi-xó-Xuxa estou contente porque agora eu vou te ver / Xá-xé-xi-xó-Xuxa / Passei o dia esperando por você // Passei o dia / Recitando o A.B.C. / D.E.F.G.H.I.J. pra você // No fim da linha / Encontrei uma letrinha / Que nem asa de andorinha / Pra cantar meu A.B.C.” Brinca tradicional, o trava-língua leva o caboclinho a treinar intelectual e fisicamente a fala. Edu Lobo e Paulo César Pinheiro, em Bate-boca, do Rá-Tim-Bum (1989), fazem uma colagem do material popular que desafia até marmanjo: “O peito do pé do pobre padre / padre Pedro é preto. / Tem um tigre, tem dois tigres / tem três tigres tristes / num ninho de mafagafo / cheio de mafagafinhos. / Desmafagador será quem os desmafagar e / na grade da gruta um grupo grande / de gringo gripado / grande gruta grade grega gringo grogue / Olha eu quero ver qual de vocês / consegue agora repetir tudo outra vez”.
A descrição e o convite
Há canções que descrevem festa. Entregue ao folguedo oposto ao mundo das obrigações, a criança brinca e o adulto pode entrar na dança. O padrão desenha-se em Ciranda cirandinha. Cantiga gravada em nossa cultura, chama ao grupo exigindo de cada participante a contribuição individual: “Por isso, dona Rosa / Faz favor de entrar na roda / Diga um verso bem bonito / Diga adeus e vá-se embora”. A Banda (1966), de Chico Buarque, simboliza esse flash de alegria contra a rotina que, ao final, é restabelecida: “E cada qual no seu canto / Em cada canto uma dor / Depois da banda passar / Cantando coisas de amor”. Em Superfantástico (Ignácio Ballesteros e Difelisatti, versão de Edgard Poças, 1983) a Turma do Balão Mágico incita toda gente ao voo da folia: “Vamos fazer a cidade / Virar felicidade / Com a nossa canção // Vamos fazer essa gente / Voar alegremente / No nosso balão!”. Paulinho da Viola convoca quem quiser já dançando com os lábios: “Bebadosamba, bebadachama / Também”. Ciranda, banda, balão e samba celebram, assim, o divertimento, o pequeno carnaval da brincadeira, o convite à viagem coletiva.
O bicho, a fábula
Bichos não faltam. Há jogos, como a parlenda do jacaré, cantada e gesticulada: “Jacaré passeando na lagoa / Viu um peixinho / Abriu a boquinha e / Nhoct, nhoct, nhoct”. Em 1960, João Gilberto (O Pato, de Jayme Silva e Neuza Teixeira) traz um quarteto de aves a formar o conjunto vocal: “O Pato vinha cantando alegremente, quém, quém / Quando um Marreco sorridente pediu / Pra entrar também no samba, no samba, no samba / O Ganso, gostou da dupla e fez também quém, quém, quém / Olhou pro Cisne e disse assim ‘vem, vem’ / Que o quarteto ficará bem, muito bom, muito bem”. Há canções à maneira das fábulas de Esopo, Fedro e La Fontaine. Animais que encenam comportamentos reforçados ou ridicularizados. O Pato (1980), de Vinicius de Moraes e Toquinho, ensina que criança que apronta acaba mal: “Tantas fez o moço / Que foi pra panela”. O Leãozinho (Caetano Veloso, 1977) repete sons e melodias a adormecer não só menina: “Um filhote de leão, raio da manhã / Arrastando o meu olhar como um ímã / O meu coração é o sol, pai de toda cor / Quando ele lhe doura a pele ao léu”. Há o gorila, o leão e a arara tristes no Zoo (2000) de André Abujamra e Theo Werneck. Eles clamam por liberdade, querem seu habitat, não a vitrine viva: “Tira os bichos do zoo / Põe o homem na jaula / Põe o homem nu”.
O direito, o dever e a aula
Versos que educam sem livro didático pastoso e professor reprodutor. Versos que antecipam o turbilhão da curiosidade, tipo o que registra Paula Toller em Oito Anos (2004), na interpretação de Adriana Partimpim: “Por que que a gente espirra? / Por que as unhas crescem? / Por que o sangue corre? / Por que que a gente morre?”. Em ritmo de palavra-atrai-palavra e todo mundo batucando, Criança não Trabalha (1998), de Paulo Tatit e Arnaldo Antunes, enumera direitos da criança. Levanta-se contra o trabalho infantil: “Criança não trabalha / Criança dá trabalho”. Deixa o menino brincar (1965), pediria Jorge Ben Jor. Mas a vida não é só curtição, moleque precisa cumprir tarefas diárias, como tomar banho. Em Ratinho Tomando Banho (1995), de Helio Ziskind para o Castelo Rá-Tim-Bum, o animal de esgoto ensina a cuidar da toalete, lavando da orelha ao pé, passando pelo “fazedor de xixi”. Já a rapaziada do Matéria Rima, no rap ?Livro Um Ler Que Por (Joul, 2005), manda um recado à galerinha que não dá a mínima para a leitura: “Por que ler um livro? Ah, te digo já / Abra, sente-se, vamos viajar / Do começo até o fim, Via-Láctea / Turbilhões de emoções, lendo obras de Camões / Nesse veículo sem botão que te leva pra outra dimensão”. E o Grupo Último Tipo, no musical O Livro de Rebeca (2009), segue no incentivo: “O livro é assim: / Tem choro, tem riso, tem sonho, tem fim.”
A lenda, a aventura
Lendas brasileiras e estrangeiras repercutem na canção que prepara futuros leitores. Na quadrinha popular, a bruxa Cuca põe medo em quem não quer dormir: “Nana nenê / Que a Cuca vem pegar / Papai foi na roça / Mamãe foi trabalhar”. Ela aparece no sítio de Monteiro Lobato, na música que Geraldo Casé, Waltel Branco e Sylvan Paezzo escreveram para a adaptação televisiva Pirlimpimpim (1982): “Olha a minha fuça / Olha que boneca / Não existe bruxa / Mais charmosa”. Em 1977, a banda progressiva Terreno Baldio pintou o monstro Curupira. Orlando A. Beghelli Filho fez a letra: “cabelo de fogo / folgo não vê-lo / pele que forja / fogos vermelhos // sinais, assobios, / pios demais / falsos, de rios / farsa que trai // pés invertidos / pra frente e pra trás / senhor da caça / dos animais”. Em 1993, o Saci surge todo suspense nos versos de Paulo César Pinheiro para melodia de Guinga: “Quem vem vindo ali / É um preto retinto e anda nu / Boné cobrindo o pixaim / E pitando um cachimbo de bambu / Vem me acudir / Acho que ouvi / Seu assovio / Fiquei até / Com o cabelo em pé / Me deu arrepio / Frio”. Aventura sem perigo interessa pouco. Roberto Carlos sabia disso ao gravar Noite de Terror (Getúlio Cortes, 1965): “Tremi de cima abaixo sem sair do lugar / Quando de repente eu ouvi alguém falar / Bem junto de mim esse alguém me falou bem assim / Eu sou o Frankstein”. E o terror aumenta, com graça e sotaque caipira, em Romance de Uma Caveira (Alvarenga, Ranchinho e Chiquinho Salles, 1940): “Era duas caveira / que se amava / e à meia-noite / se encontrava / pelo cemitério / os dois passeava / e juras de amor / então trocava”. Assim começamos entender som, língua, falas, seres, narrativas, tensões, sentimentos e tudo o mais que essas canções plantam em nosso imaginário mesmo antes de escola ou leitura.
(Revista E, SESC-SP, 01/08/2011.)
Por Pedro Marques
16 ago. 2011