Um naco de poesia e ensino. Três dentes de troça que isso é do homem, diz Rabelais. Desde que mirei a poesia, corro de chororô, sabidão e poetaço como sabiá da gaiola. “Poesia não deve dar nada”. “Ninguém lê”. “Vai de prosa”. “Máquina de sentir ou pensar”. “Vide teoria, crença”. “É Pound, é pedra, é o fim…” Queixume de plantão, frases formulares, tipo autoajuda intelectual tão longe do coletivo quão perto do totalitário.
Devastar a cena é para quem deita na posição de excluído. Ora, poesia é estudo e ataque, tergiversar jamais. Existe até quem ganhe uns cobres com ela. Uma cordilheira de textos, leituras e dinheiro levanta-se de sites como Recanto das Letras e Sonetos.com.br. Blogs faturam do Google e de patrocínios. Prêmio para edição, viagem, merenda, estadia. Bolsa para compor livros e estudar o assunto. Cachê para falar do tema. Curadoria e consultoria a poetas e especialistas. Não falo em qualidade, nem do uso inteligente de recursos, vejo apenas a estatura da onda.
Poeta chororô faz barulho e beicinho. Sofre porque ninguém fala seus versos. Nem sabe de leitores, olha o elogio incerto na mídia. Enfeitiçado, bebê de lado, seu desejo não altera a cotação do dólar. A suposta falta de leitores cheira à crendice boa para quem vive de verba pública e incentivo fiscal. Muito poeta e editor juntos nesse golpe. Felizmente, há editoras de ofício e poetas antes especialistas em poéticas que em editais. Público há, talvez não a fabricar best sellers. Poeta tem jornada dupla, dia pelo dinheiro, noite pela arte. Formiga e cigarra num só. Um monstro.
Várias editoras abusam do chororô. Editor posa de herói da poesia nacional, joga orçamento dobrado ao poeta que, crente em dividir os custos, está, no fundo, pagando a fatura total. Pior, o coitado talvez financie seu livro e de mais algum “parça” do editor. Gráfica sob a pele de editora trés chic. Poeta tem dia de otário. É ficar ligeiro. Conhecer o processo, fechar com editora séria ou ir por conta.
O sabidão dá de ombros aos colegas de profissão. Compra ou ganha livro de amigo. Na livraria, consome gente recomendada por página de imprensa, docente ou semicrítico. Ignora a safra contemporânea a espera do milagre: leitura e reconhecimento. Descompensação psíquico-econômico. O sujeito pouco faz e depois vai pedir que o estado e a empresa invistam nas musas. Com o verbo, Vieira: “Do fio e do nó se compõe a malha, quem não enfia nem ata, como há de fazer rede?”
Se o sabidão cega às obras de Cida Sepulveda e Marco Catalão (demais depoentes desta seção), viciado em cânone, quem vai de autor novo? Muitos almejam o conforto do carimbo, virar avis rara; poucos dispostos a investir no novo. Dinheiro? Medo de arriscar? Ser avoado? Preguiça de pensar? Todos os venenos. Mesmo pessoas da área, estudiosos e professores de história, teoria e literatura às vezes embarcam em opinião apressada, comprada, incorreta de jornal, o qual tem seu business a defender. Toda semana, numa famigerada rede social, publico, de preferência, um poema de autor vivo até aquele dia. Poetas, mais ainda que outros animais, tendem a curtir o renome ao anônimo, alheios a cor do texto.
Esmolar fama e favor. Prefiro olhar no olho do meu pai. Tem bárbaro de networking, barata de lançamento, ególatra de facebook. Dá certo, poesia pipoca de cinema, poema de vitrine. Loucura vira plástico, paideia supermercado. Depressa gritam “livraço”, “mais inteligente”, “melhor do ocidente”. Exagero é do buzz marketing cult, que, em poesia, também pode indicar a forma de tratar o dono da hipérbole, isto é, o poetaço. Não adianta reclamar que eventos afortunam Carpinejar, Gabriel O Pensador. Depois pendurar na imprensa em troca de duas linhas. E nunca pisar em escola. E engolir migalha da feira literária da vida. E fazer algo? Erasmo bem ferroo aqueles com olhos de lince aos defeitos dos outros, e de toupeira aos próprios.
Não faltam poeta e vereador com alergia de escola pública, da guerra e da massa de lá. Convite de Sesc e instituto cultural deve ser aceito, óbvio, mas há escolas à volta. Poesia e sociedade dão trabalho. Chegar, propor algo que some à rotina. Esquecer do eu-poeta-quero-luz. Trombo mais gente ligada ao pulso poético nessas instituições do que em vernissages. As professoras e professores desafiam. Outro dia, uma relatou a pauleira. Manhã: colher camisinhas, fezes, seringas e bicos de cocaína do parque. Tarde: educar 35 crianças de 2 anos. Noite: cuidar dos filhos. Madrugada: estudar para a pós-graduação lato sensu.
Estudei em instituições estaduais, da alfabetização ao doutorado. Entrei em Letras na Unicamp para ler e escrever. Virei especialista em poesia. Acumulei material estranho à tese, artigo, relatório, congresso, enfim, academia. Comentários, anotações, crônicas sobre poesia publicados em parte aqui e ali. Coisa de curso, palestra, prefácio, entrevista, orelha, oficina, revista. Para ajudar colegas, alunos, interessados, loucos, mantenho on-line um pedaço dessa lenta reflexão.
O site Poesia à Mão rola às minhas custas desde 2010. A linha editorial a meu risco. Espaço para temas que quero e posso. Sem apoio financeiro, não me movem listas de lançamentos ou jornais e revistas que fazem a crônica do mercado editorial. Não escrevo de moda ou do que gosto. Depois de um tempo no ar, o site obteve ISSN do MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia). Nada mau, em tempos que “produção intelectual” e “inflação galopante” dividem a bola.
Escrever, estudar e ensinar poesia, pelo menos a mim, é atuar, produzir conteúdos e contextos que misturam traços acadêmicos, didáticos e literários. Apreciações de poetas sobre os quais consigo falar, afamados ou não. Dicas de sites que reúnem comunidades leitoras e produtoras, discos com algo sobre linguagem, tutoriais. E poesia própria, que fujo da mordida de Marcial: “Seus versos não mostra, mas ataca os meus, Lélio. / Ou para de atacar ou mostra os seus”. Isso tudo é nada, apenas algo além do choro e do glacê.
(Depoimento à Remate de Males – Revista de Teoria e História Literária, 34.2, Jul./Dez. 2014.)
Por Pedro Marques
20 mar. 2015