340º Poema da Semana | 20mai2024

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Matar um porco é fácil. Levanta-se a perna do animal e mete-se a faca sem nenhum dó. O berro tenta dizer ao mundo que a morte o encontrou. O silêncio da manhã atrás de casa transforma-se em urros que rapidamente colam-se em todos os escombros da memória. O desespero do porco com a faca cravada na carne branca nunca nos abandona. Impossível. Nas redondezas do fim do mundo, nossos esquálidos porcos eram mortos numa manhã de sábado. O ritual nos causava a ansiedade da espera. À noite, inquietos, aguardávamos o grito que acordaria o mundo. O pai não nos deixava acompanhá-lo ao chiqueiro do condenado. Criança precisa manter distância da morte. Três adultos eram suficientes. Dois seguravam o bicho a debater-se, tentando negar uma falsa eternidade. O pai, então, levantava a perna do porquinho e cravava a faca com a barbárie herdada. O grito ensurdecedor e intermitente – em golfadas como se em busca de uma última esperança – chegava-nos. Uma pedrada no ouvido. Os berros rondavam a casa durante dias; ainda hoje dá voltas em mim. O grito de um porco morrendo é a certeza de que o inferno é possível. (…)

*Rogério Pereira_1973-_Na escuridão, amanhã_2013