326º Poema da Semana | 12fev2024

Faltei ao serviço

Meu patrão que me desculpe
Mas hoje vai ficar me esperando
No mesmo horário de sempre
O relógio tocou como um louco
Desliguei e resolvi dormir mais um pouco
Foi aí que me atrasei
E como me atrasei!
Levantei com a cara toda amassada
Parecia que eu tinha levado uma porrada
O espelho ainda me disse
Bem feito!
Quem mandou se encantar com a batucada?
E olha que espelho não mente
Daqui a pouco eu não preciso nem de pente
E o que sobrou do meu cabelo
Tá ficando tudo grisalho
Deve ser porque minha vida
É só trabalho, trabalho, trabalho

Dizem por aí
Que a boemia atrapalha o trabalho
E por que não dizer o contrário?
O dia estando perdido
O salário será descontado
A menos que eu consiga
Descolar um atestado

Mas deixa isso pra depois
Mandei meu filho ir ao bar do Seu Zé
Comprar pão e leite fiado
Apesar da miséria que eu ganho
No fim do mês o acerto é sagrado
Queria ter mais tempo
Para cuidar que ele ande sempre no trilho
Mas se dou duro o dia inteiro
É para que o filho do meu patrão
Não seja também o patrão do meu filho

Meu barraco é o mais alto
O mais longe do asfalto
O mais perto do céu
E isso não é nenhum sacrilégio
Aliás é até um privilégio
Daqui de cima dá pra ver tudo
O sino da igreja
O quintal da Dona Eurica
Mãe do Zeca Cabeçudo
Que lava roupa pra gente rica
E não reclama apesar da canseira
E enquanto esfrega
Vai cantando aqueles cantos de lavadeira

Lá embaixo, ao pé da seringueira
Tem um banco de madeira
Onde a velha-guarda se reúne
Pra quela conversa corriqueira
E um bom jogo de dominó ou carteado
Todo mundo aposentado
Gente cheia de sabedoria
Que aprendeu que a vida
Não é feita de correria
E que toda vez que amanhece
Acontece um novo dia

Olha só quem vai ali
A Maria, mulher do Joaquim
Que tinha um cachorro
Que corria atrás de mim
Quando eu pulava o muro
Pra roubar suas goiabas
– Ah, moleque sem vergonha!
Se te pego, vai levar umas palmadas

Perdi a hora e pude perceber
O que se passava bem diante do meu nariz
Que pra ser feliz eu preciso de tão pouco
Dessas ruas sem asfalto
Dessas casas sem reboco

Perdi a hora e pude perceber
Que tudo que a vida nos dá é de graça
Que nada em troca ela há de querer
Por isso, trabalhem
Trabalhem sim
Mas não deixem de viver

*Serginho Poeta (Sergio Mesiano)_1970-_Donde miras: dois poetas e um caminho_2007