Tempo em transe: Humberto Pio

Coágulo (2019), de Humberto Pio (1972-), tenta estancar a corrente sanguínea das eras, salvar o sopro que definha desde o primeiro choro vermelho. Irrigado pela hemorragia existencialista, que a todos ensopa desde o século XX, o poeta medita a desdita em meio a quinquilharias, a rotinas. Filósofo do inútil, imagina no fluxo-tropeço da fala; arquiteto safo, versa angulando emoções.

O “Cerne” do temporal é que sua roda não para. Jamais se paralisa o tempo, a não ser por efeito contemplativo ou estético. Nisso, a poesia opera como anestésico dramático. Ela precisa seriar as palavras no tempo para cantar, imaginar, meditar. Ao mesmo tempo, o signo poético colapsa o tempo natural, como uma parada cardíaca. A poesia peleja contra a ampulheta que gotejamos até o último grão de ar. A poesia como performance do que foi, “nostalgia (até) do que ainda não veio”; coágulo da ferida que, havendo ou não como matéria, haverá como memória.

A dança da vida, o “Carrossel” trepidante. Os parênteses do poema são o solavanco do cavalinho que finge cavalgar, são memórias piscando de mau-contato. É da memória falhar para inventar. Os velhos gregos chamaram a verdade de “não-esquecimento”. O foco não era a fidedignidade do fato, mas a certeza do sentimento eufórico ou disfórico. Assim, vera é a alegria de Édipo derrotando a Esfinge; vero o terror de Édipo ao se saber irmão das filhas. A verdade é o enigma inesquecível, não a realidade lógica da solução.

O que poderia ter sido já é tempo de espera ou, melhor, tempo de criar sobre o possível. Por isso, o Selecionado de 1982 vence o de 1994. Lá, vivemos a recriar o malfadado time dançante; aqui, é a vitória burocrata tal como sacramentada. E Humberto sabe que, nas imediações do gol, o “tempo estanca”, como um a parte no cosmo, sem essa de pênaltis alternados.

O presente engendra futuro e pretérito. Hoje é o que existe, o passado é refeito, o amanhã sonhado. Sempre o oco a ser preenchido por algo a ser outro oco ad infinitum. A ciência descreve o corpo feito veias, mas o corpo da dor não sai na tomografia. O coágulo cutâneo lembra o sangue que tornou rio rachado. A dor que ali esteve, pancada ou bolada, nenhuma tese vai provar. Assim, “Aos pés da amada”, leitor, não te vale a cirurgia plástica que vende eternidade, apenas o tempo que lesma sensações.

Humberto engaja os sentidos nessa luta vã: enfrascar um segundo de amor. O instante foge e ele busca segurar “teu cheiro em minhas mãos”. Talvez as mãos de reza sejam conchas fechadas, num pedido de mais tempo, pelo amor de Deus. Daí que o termo “Zum-zum” seja a metáfora do livro: o eco do que pode ter havido, o rumor que vem vindo para sentir o mundo na língua. Não são versos sobre o tempo, os poemas vão grávidos de tempo. Há um sentido primevo para cronologia, (cons)ciência no tempo. Também para cronograma, escrita do tempo.

A poesia atualiza o que foi a trepada (“Amor urbano”), que nem precisa ter sido foda fora do poema. Humberto renova a própria ideia de volume poético, convertido em empilhamento de tempos que já não prefiguram Deus, como em Agostinho. A poesia, nessa nova arquitetura, empilha/compila tempos: “Numa manhã de carnaval compilo todas as manhãs dos poetas.” A poesia é seu edifício de tempos em ruínas. É a frincha entre ocorrência e ocorrido. O poeta lavra um Boletim de Ocorrência do que acomete o humano, os mesmos sentimentos para acidentes outros. A poesia do tempo em transe. O poeta do tempo em gaiolas. Ela pia. Ele Pio.

(Orelha a Coágulo, [2019], de Humberto Pio.)

Por Pedro Marques
24 jun. 2019