No princípio era o cara, depois a obra

Primeiro chegaram relatos sobre um cara, que animava incertas rodinhas de uma certa universidade. Kevin dava cabeçada, subia em árvore, sem essa de aluno, “si, señor”. Amava o que lia e bebia até o último cheiro da vida. Persona maldita entre reprimidos e emulada por epígonos, duas águas, em parte, contaminadas por mimados arrependidos. Essa tradição oral do diz-que-diz-que contava um tipo Dean Moriarty (Jack Kerouac, On the Road, 1957). Alguém à vontade na cumplicidade e decadência. Kevin Kraus (1973-) era esse personagem plano. Até que a sorte esbarrou a gente e, claro, a caricatura era vidro e se quebrou. Kevin é uma figura multi-dimensão, voa sem paraquedas, fala língua de manos e romanos, toca com vira-latas, tem filhos, arrepia o poder e, sobretudo, afina amizades. Tudo isso, e tanto que não cabe teclar, vai encadernado neste livro, costura de vida e obra, três décadas de plantio poético. De minha parte, meu barato leitor, arrisco apenas algumas dicas para esta inadiável root trip.

A fala verso. Verso livre pode significar liberdade para o sujeito desandar no ritmo. As soluções contra isso são tantas quantos seus praticantes. Kevin passou por essa pinguela, fatal para a maioria, equilibrando duas habilidades. Primeiro, o ritmo da fala, o turno de cada interlocutor num papo civilizado. Aqui, o leitor está convidado a falar com o poeta. Tudo, evidente, em língua culta, milimetricamente infiltrada por usos orais nunca desejosos da ginga fajuta. Depois, as quebras de versos e marcas de respiração, nem sempre pontuadas, apoiadas numa sintaxe imagética, por assim dizer, que pode abrir mão da frase gramatical em prol da imagem. “Alberto”, nesse sentido, é exemplar. O corte do verso obedece ao descompasso da ansiedade, o rapaz que imagina confessar à esposa a infelicidade dentro de um casamento de brinquedo: “Ele não sabia / dizer para sua mulher / que não a amava mais, / que não suportava / o frango grelhado, / o secador de cabelos / pela manhã, / o perfume doce da Avon, / o pacote familiar”. É uma conversa, estilização daquela taquicardia que já recolheu muito noivo ao paletó de madeira.

As sacadas irônicas. É quando o poeta propõe alguma associação inusitada, fazendo com que a dentição de cima gargalhe e a de baixo pasme. Porque poesia também transita o corpo. Assim, em “Últimas notícias” o verbo bater é prazer de Onan, solução do apetite solitário, mas é o bit da existência, necessidade de gritar ou esmurrar para confirmar, a si e aos outros, que o poeta respira. No primeiro caso, o desenho ridículo e incontornável do inveterado punheteiro (“gozar na parede e deixar lá”); no segundo, o drama de quem carece dar-se a ver (quem não?), ainda que com agressividade (“pra saberem que estamos vivos / e atentos”), esta exacerbação do amar. Imagine Paulo Leminski fazendo os balões de Angeli. A própria condição de Mazombo, termo que dá nome ao volume, tem muito de ironia que, no fundo, mina das fissuras de toda ordem estabelecida. Filho de estrangeiros, o mazombinho domina as mumunhas linguístico-culturais do país de chegada melhor que os pais. Sua condição é irônica de saída, porque conhece o mundo que o cerca para além da proteção adulta, nesse caso ainda mais alienígena. Ao olhar paterno, tal criança talvez chore em instante inoportuno ou ria na hora errada – má zombaria, para brincar de etimologia. Ora, Kevin é mazombo dobrado, porque assim nasceu e porque isso é ser poeta: sentir e dizer trocado, para que você, leitor, acorde seu ego de leão sedado num zoo argentino.

A rua vs. a casa. Impasse congênito à modernidade, o fórum civil, presente na poesia desde sempre, é tensionado pelo foro íntimo do poeta, só possível depois das revoluções pós século XVIII. O centro de operações poéticas desse conflito, verdadeiro alambique de melancólicas e spleens (aliás, outra acepção para mazombo, esse macambúzio de mal com os búzios), é o quarto. Aí isolado das ruas sortidas de prazeres e dores, aprisionado para poder escrever, o indivíduo enxerga as entranhas que os olhos evitam. Essa a alegoria de “Escrivaninha”. Mas podia ser cama, mesa, o notebook do artista urbano que luta entre o viver a “boceta úmida e aberta” e o escrever a página seca e escancarada. Kevin olha a cidade com uma pena atroz, interessa-se por seus prejuízos e vazios. Lucros e dividendos são, de resto, responsáveis pelo cova aberta em que se converteram metrópoles como São Paulo e Londres. Em “Ciranda”, brincadeira coletiva imemorial, até os fantasmas das crianças são enterrados pelo “fluxo autorama”. No meio da polis de aço, feita por muitos para usufruto de poucos, o poeta tenta se manter são. Vacinado contra os filósofos, que o acusaram de mentiroso, agora resiste aos empreendedores do apocalipse urbano. Ele roda para si mesmo a cantiga: “escrevo pra me salvar”. E a máquina também tritura carne e mente no privado, onde o “Dono” de casa, enlouquecido, retorna à fase oral ao “lamber privadas”. Já “Tauane” curte sua derrocada pessoal pedindo um sanduba (“carregado de gordura / e esquecimento”) pelo aplicativo de moer gentes. Talvez seu fone de ouvido toque “Down on the street” (The Stooges, Fun House, 1970), mas ela não pula os muros nem escreve para se libertar.

A erótica bukólica. A pulsão de vida desta poesia é o amor em suas variações e posições. O livro abre com o poema “Mamute”, constatação de que ainda somos animais, mandando ou não naves tripuladas para Júpiter. Nossos sentidos ainda lembram a caverna, ainda pressentem o tigre, ainda farejam carniça pelas ruas. Como na Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, a aurora do homo sapiens não apagou suas tenebrosas trevas, hoje cobertas por grifes e diversões eletrônicas. Como em “Amanhã é agosto”, Kevin escuta o enorme urro ancestral “dos murros na parede do banheiro”. Ele sabe que a morte espreita. Sua resposta ao inferno portátil, que todos carregamos, é o sexo. Trepar é preciso, viver como ameba não. Em meio a cenários de guerras e pestes psicológicas, Kevin cria pequenos locus amoenus, emprestados ao interior caipira das toadas de viola. Nesse cenário marrom-verde, revoado de insetos e cheirando a fruta, enxerta taras de corar lenhador. A inocência é enquadrada à la nouvelle vague, até ser violentamente desintegrada por desejos animalescos mais inesperados do que em Charles Bukowski, cuja poesia Kevin traduz como ninguém. Nos anais desse bukolismo de quintais de terra e grama, destaco o “Noturno”, em que os corpos desatam todos os sentidos, como quem amanhece alerta na floresta. Na hora do vamos ver, pernas e braços se confundem (“de braços em nó cego”), o repugnante e anguloso de um Egon Schiele (Lovers: Man and Woman I, 1914).

Enquanto a Igreja mandava no tesão, condenando o corpo como deformador da alma, a sátira bestializou Eros para moralizar o homem, ensinando-o a se salvar da perdição. Mas num século XXI em que o ser humano é uberizado em ritmo algorítmico, em que a alma está apaziguada a veneno-remédio, o Papa é camarada e o corpo só importa enquanto besta de carga e consumo, no sexo está a redenção da humanidade. A felicidade pode estar “escondida na goiabeira do quintal”, ali onde PA$TORE$ judiam diariamente de Jesus. A felicidade, segundo Kevin, “é juntar somente o sublime”, isto é, a arte de partir e zelar, a arte de cozinhar e falar, a arte de versar e florir, a arte de perder e amar, a arte do ser.

(Prefácio a Mazombo, [2020], de Kevin Kraus.)

Por Pedro Marques
09 out. 2020