Meio Tom pra Cá, Meio Tom pra Lá

FundosParaDiasDeChuva2Fundos para Dias de Chuva (Rio de Janeiro: 7Letras, 2004) é a estreia de Annita Costa Malufe. Primeiro livro coleta o que o autor produziu até este ponto da carreira, certo? Não no caso de Annita que, de saída, enfeixa um volume orgânico e coeso. Como dos cabelos se divide as partes para a trança, separo aqui três mechas para tecer a apreciação.

Penumbrismo à paulistânia. A paisagem úmido-cinza da cidade de São Paulo – spray de garoa, neblina em cortina, frio – serviu de fundo para muita gente. Ribeiro Couto, Mario de Andrade e Guilherme de Almeida, na década de 1910, plantavam o eu lírico dentro de casa, um expectador da vida a passar. Operando como tela, a janela enquadrava as ações só como possibilidades. Essa espécie de spleen paulistano era a antítese de um nacionalismo dominante, aquele que tomava o Brasil como festa do corpo-a-corpo, pacto do corpo-natureza.

Fruto de uma condição singular (latitude tropical; altitude média; proximidade do mar) o clima da capital ganhou, nas últimas décadas, o peso da poluição, temporais e violência urbana. Novos vetores atmosféricos e sociais a segurar a poeta dentro do apartamento. Não que ela desconheça a rua, mas prefere o lar para girar o motor da imaginação e da memória que às vezes beijam a loucura. O cotidiano privado é sempre privilegiado em detrimento ao público.

Nos dias de chuva fina
cabe ficar desfiando lembranças opacas
dessas meio disformes
com cara de anos trinta
ficar divagando nas veias da madeira
da velha escrivaninha do avô
e pensando se o amor
vai além de
nomes
números
e essa longa espera
insone

Dentro do quarto, na solidão silenciosa, a cidade tende a chegar pelos ouvidos de Annita. A série de quatro “Modulações”, como sugere o título, frisa o movimento típico dessa poesia: a transposição do tom coletivo para o individual. Os rastros sonoros da vida externa são preenchidos com poesia, assim a memória. O rumor que vem da rua não convoca a aventura concreta do corpo, do samba, pelo contrário, convida ao mergulho íntimo, à música de câmara. Há perigo lá fora, por isso o medo confesso já na primeira modulação: “não posso chegar até a porta”.

Poesia em ato. Dobrar-se sobre o gesto da escritura é da lírica. Antes atributo da poética, o século XX intensificou tal reflexão no intercâmbio com a filosofia e a teoria literária. Assim, respectivamente, Annita parece manter vasos comunicantes com Gilles Deleuze e Maurice Blanchot. Desse contato talvez venha sua concepção de poesia que não basta ao vazio. Como se a água poética chovesse em copo furado, ela não se cansa de escorrer as palavras para a cilada que sabe preparada. Os versos de “Crivo” revelam esse sisifismo de todo poeta, que Annita dramatiza num espaço entre doméstico e abstrato.

Crivo

Neste enxame que me povoa
cato com a escrita
uma asa
uma única asa de bordas transparentes
que parecia tão igual às outras
e erijo um pedestal

(busco a insensatez que preencha meu corpo de nuvens
crio asas em um vidro vazio de geleia)

Murmúrio do verso livre. O verso de Annita, pelo menos neste livro, não tem a horizontalidade quase prosa de Ana Cristina Cesar, que ela bem estudou. Não perfaz as grandes ondas melódicas de um Ferreira Gullar. Tampouco tatibitateia como certos imitadores de Décio Pignatari. O que faz essa poesia é murmurar a mensagem. Com raros saltos de entonação, aqui a oralidade caminha semitonada para os nossos ouvidos.

Lençóis

Olho farta os lençóis que sobrevoam o quarto
(pátio árido
onde a luz branca da manhã
é cinza)

escuto as esquinas da casa
e seus frascos de torpor
vazados

resta uma única brisa
passeando entre as pernas
algo que ficou de ontem
ou que se foi
com a chuva

Não ouço esses versos declamados no palco, mas enunciados no ritmo da chuva fina, à luz do dia nublado que vai nascer em São Paulo. Essa contenção pode, por fim, abrir-se à música propriamente. De um extremo, o canto-sopro de João Gilberto ou Adriana Calcanhoto não parece longe daqui. De outro, as paisagens e mini-narrativas que avançam sem surto exclamatório, meio tom para lá, meio pra cá, propiciaram ao compositor Silvio Ferraz mais de um experimento eletroacústico (poema-em-música). E de três temas tramei minha leitura.

Por Pedro Marques
23 nov. 2010