Epístola a Epaminondas

Arqui-estimado Epaminondas, mudo heterônimo contra a onda de afirmar a voz do poeta como firma. Difícil achar uma nova que se diga, e repetir provoca tédio, por isso pego leve com teu livro.

Chego a teu ouvido para mesurar, aos olhos do leitor para aliciar. Esse teu contraparente, saído a autor do quanto sejas, entra pouco na conversa. Tu hás de seguir um destino próprio, Brás Cubas redivivo; para Marco Catalão, a rota com pedágios. Eu te chamo tu, que já contas do meu acervo literário; ele, você.

Eu te adivinho, caro Epa, destilar o álcool do entulho privativo. Entre livros, mobília e vinhos alegóricos de menos, assedias as quinquilharias buscando o poético, “ainda que não se veja nenhuma lua na janela do apartamento”. Ainda que desconfies do teu nome de pia, justamente pela poesia. Ainda que apenas se pressinta teu verso métrico, através do verso livre de um Catalão sem medo de reger a sintaxe ora em adagio, ora em andante.

Todo poeta é vaidoso, sobretudo o deficitário. Tu não brigas no escritório, no banco ou no restaurante por decoro. Crês numa missão além, metendo-te com metáforas. O emprego inglório e a rotina de rês. O despeito ao artista cheio de sacadelas e vazio de arte. Sabemos que a ironia é um bálsamo, que até “Pessoa foi ignorado”, que o time afetado sempre vence o primeiro tempo. Como esse narrador te conhece tanto, sabendo tão pouco de ti? Há fatos, de fato, que se me revelam por ele.

A peleja a cada segundo do relógio. Na prática, escreves apesar da rotina. A poesia vence a falta d’água, o filho pidão, o agente que agenda outra palestra? Sobra tempo para leitura e estilo? Principalmente: há possibilidade de mensurar o quão se faz enquanto poeta? O cotidiano estorva mais o desejo grande. “Derrotado pela prosa do dia”, as prateleiras de autoajuda e auto-ficção desabam sobre tua arte. E se reclamas com palavras sutis, os parceiros te chamam patético; os familiares, pateta.

Haja egocentrismo para resistir, velho Epa! Querer-se alfazema no mar de lixo. Poesia motivacional para poetas. Fazer da linguagem o muro gorduroso de lamentações, exibição de egos, beicinhos problemáticos. Inventada para testar o outro, a poesia vira drama interno. O leitor voyeur assiste o poeta de água doce afogar o cachimbo: “a poesia é minha cachaça”. E ninguém tem nada com isso… além de comprar e dar likes aos montes.

Mas Epa, quando quase me apiedo de ti, vítima da praga contemporânea, Catalão me prega uma pulga atrás da orelha. Terias te tornado algum personagem desse teatro que vituperas? Serias tu desses “poetas que cuidam dos cachorros de outros poetas”? Por via das dúvidas, sendo craque da técnica, não mereces dó, dou-te apenas razão, se correto estiver Catalão.

Lembro que eras bom de conta. Nunca caíste naquela de que o artista da língua é um bestunto da cuca. Não calculas os prêmios post mortem por megalomania, mas por certa formação cristiana. Se o reino Dele é do outro mundo, tua consagração não pode ser para hoje. Na “Bolsa de Poesias e Futuros”, apostas nas almas caridosas do nicho cultural comprando tuas ações. Até o negócio vingar, tua esposa, agora única acionista, vai “fazendo contas e malabarismos financeiros”. Só o empreendedor almoça, meu irmão no Mercado!

Teus corredores de espelhos polidos e quebrados. Como a crítica que se preze atira até contra si, Epa, também ficas no rumo das balas, “escrevendo poemas que ninguém lê”. Teria que aprofundar esta ou aquela página engrenada, certos versos azeitados, agudezas em parafusos. Enquadro, tão somente, a máquina de perversidades e ironias. A elocução calibrada na sátira cortês, disparos a Erasmo. A didática estapafúrdia a Calvino, diversão partida ao meio.

Teu livro, Epa, é um poema limpo, espécie de positivo do Poema Sujo, de Gullar. O fluxo dos versos significa em si, no teu caso, tudo direto (voz-clara), luz estourada de início. Cegas pela superexposição. Em Gullar, vê-se pouco (voz-turva), luta-se por um fósforo no escuro. Ali, vamos de farolete na mão. Aqui, é preciso um ritual mínimo, pequenos esconderijos, mini escotilhas, sombras para o riso-choro. Lá, o leitor paga para pisar na lama. Aqui, o espectador está são, vigia o poet reality show.

És composto, Epaminondas, de manias em miniatura, de rituais portáteis nesta terra avessa a liturgias e ritos de passagens. Tanto faz criar ou copiar. Um ouvinte para cada mil cantores. O aniquilamento: pisar o gênio inútil e emular o verme fértil. Gostei grande! Mil leitores para teu painel de sintomas!

Destas Campinas do Mato Grosso de São Paulo, julho de 2018, Pedrinho Marques.

(Prefácio a As Asas do Albatroz, [2018], de Marco Catalão.)

Por Pedro Marques
26 fev. 2019