280º Poema da Semana | 06set2021

Narciso em férias

(…) Nenhum deles usava farda ou qualquer outro signo exterior que revelasse sua função. Tampouco a caminhonete era uma viatura de polícia que pudesse ser reconhecida como tal. Isso emprestava aos seus modos decididos mas vulgares um ar sinistro. Depois de rodarmos por muito tempo por ruas de São Paulo, vimo-nos pegando uma grande estrada. Quando pedimos explicação para esse fato, eles nos disseram com rudeza que não tínhamos o direito de fazer perguntas. Mas conversavam entre si sem procurar esconder o fato de que rumávamos para o Rio. Naturalmente eles tinham me mostrado carteiras de policiais ao falar comigo em meu apartamento. Mas eu apenas fingi que olhei: não tinha me ocorrido pôr em dúvida a legitimidade daquela visita; eu tinha mais que tudo pressa de que o episódio terminasse, e, de todo modo, não saberia reconhecer a autenticidade de um documento de identificação de policial. Assim, nós nos sentíamos como vítimas de um sequestro comum, embora de certo modo soubéssemos que estávamos exatamente inaugurando um período em que, no Brasil, cada vez mais pessoas sentiriam medo das autoridades e não dos delinquentes, culminando com o refrão de Chico Buarque nos anos 70: “Chame o ladrão!”. (…)

*Caetano Veloso_1942-_Verdade tropical_1997