246º Poema da Semana | 11mai2020

E o vento não levou

Numa dessas madrugadas, eu senti:
um vento soprou na rua Treze de Maio,
revolvendo memórias escondidas, ainda úmidas
de sangue e de lamentos, de um passado
quem nem as pedras querem testemunhar.
Cadenas e pelourinhos, corpo e alma torturados.
Passado cuja história, branca, envergonhada,
e cuja lua – que, estéril, ainda é a mesma –
não conseguem negar.

Um vento de desamor e solidão – violência
veio dos campos e das fábricas e violou
a geometria da cidade inundada
em silêncio.
Um vento que exumou negros gemidos, sepultos
no esquecimento.
Refrescou a nossa clara e imensa infâmia,
trouxe remorsos profundos e escuros,
depois desapareceu com seu ar contaminado
de um inferno terreno, de abominável passado,
de gritos e mitos desterrados.
Um vento com cheiro de carne viva,
humana, crua, escravizada.

Foi um terrível engano? Um pesadelo?
(Gustavo, meu filho, não pergunte a ninguém
destas manchas de vermelho e exploração
que legaram às nossas alvas mãos pra sempre.)

*Vicente Cechelero_1950-2000_Só matéria do mundo_1991