220º Poema da Semana | 30jul2019

De mãe

O cuidado de minha poesia
aprendi foi de mãe,
mulher de pôr reparo nas coisas,
e de assuntar a vida.

A brandura de minha fala
na violência de meus ditos
ganhei de mãe, mulher prenhe de dizeres,
fecundados na boca do mundo.

Foi de mãe todo o meu tesouro,
veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, yabá,
do fogo tirava água
do pranto criava consolo.

Foi de mãe esse meio riso
dado para esconder
alegria inteira
e essa fé desconfiada,
pois, quando se anda descalço,
cada dedo olha a estrada.

Foi mãe que me descegou
para os cantos milagreiros da vida
apontando-me o fogo disfarçado
em cinzas e a agulha do
tempo movendo no palheiro.

Foi mãe que me fez sentir as flores
amassadas debaixo das pedras;
os corpos vazios rente às calçadas
e me ensinou, insisto, foi ela,
a fazer da palavra artifício
arte e ofício do meu canto,
de minha fala.

*Conceição Evaristo_1946-_Poemas da recordação e outros movimentos_2008