214º Poema da Semana | 22abr2019

Escaravelho

Feito um escaravelho, te guardo em meus
lençóis de cetim
e invento um poema entre as frinchas de meu travesseiro.
Nas dobras dos meus sonhos te escondo
e acaricio teus trigos e beijo as águas de teus lábios
e espreito tua janela quando apagas teu candeeiro.
Te imagino o sonho e me transponho para ele
e de repente é como se habitássemos a mesma casa
ela com lambrequins e telhas portuguesas e sancarias e beirais
e um forno a lenha onde, em fogo brando,
nosso amor ardesse em panelas de ferro antigo,
um sabor de ambrosia escorrendo às paredes;
e nela, nessa casa, eu guardasse todos os meus segredos
e trancafiasse meu destino em tuas mãos,
e jogasse ao vento a chave e o segredo do cofre
e tudo o que lá ficou
de antigo ou velho, ou mesmo rascunho de sonhos –
tudo eu sopraria ao vento.
Que o amor nem sempre é vendaval ou
maremoto.
Ele é um abricó-de-macaco encapsulado durante
algum tempo,
aguardando a estação para florir.
Me adormeço com as palavras que sempre te
disse de forma imprecisa
porque o dizer, para mim, faz-se bem difícil.
Mas elas, as palavras, estão como essas águas
que escorrem por tuas cordilheiras
como fios de prata escorrendo pelos lençóis que aguardam
que venhas neles descansar com os biguás que um dia
pousaram em teus ombros, e eles aí estão,
visíveis para mim como nunca
bicando o alecrim de teus dedos, a manjerona
de teus olhos
e a tua timidez acetinada
fina armadura que te protege – mas de quem? –
talvez do medo
que instalaram à tua revelia.

*Hermínio Bello de Carvalho_1935-_O zôo-ilógico_2005